QUANDO OS TEMPOS ANDAM COXOS...

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QUANDO OS TEMPOS ANDAM COXOS OU NÃO CAMINHAM COMO SE TINHA PENSADO O CAMINHO, TALVEZ SEJA BOM FALAR DOS TEMPOS ANTES DESTES TEMPOS.

O projecto de "MEMÓRIA NO ESPELHO" era algo que desde há cerca de três anos germinava na cabeça de alguns elementos do grupo.
Pensávamos que seria importante voltar a falar dos tempos do fascismo e de reflectirmos sobre os homens que hoje somos...

Como é nosso costume abordamos problemas nossos, falando de nós e das nossas preocupações, pensando que se esses problemas e preocupações são por nós verdadeiramente sentidos, também o serão por uma grande parte dos espectadores.
Contudo, é sempre difícil e arriscado falar do tema que nos propusemos, sobretudo utilizando o material que utilizámos, e dum modo que se afastasse do discurso político do político, assim como de qualquer tendência panfletária. Por outro lado, queríamos que o discurso deste espectáculo se enquadrasse bastante na nossa estética, no nosso modo de falar das coisas, continuando-se e aprofundando-se assim o nosso espaço teatral próprio.
Como base para este trabalho utilizámos quase exclusivamente os textos da escola primária de então, marcados por um tão profundo carácter ideológico, ideologia ora aberta ora surgindo duma forma tão subtil e disfarçada. Lembramos os nossos tempos de escola, utilizando-os para falar do sistema que os criou.
"MEMÓRIA NO ESPELHO"é, como se disse, uma reflexão sobre os homens que hoje somos, não uma reflexão consciente e racional, politicamente estruturada, mas uma reflexão sobre nós próprios enquanto seres contraditórios que transportamos ainda uma carga cultural dos tempos da nossa formação. Que cargas ainda trazemos hoje sobre nós, apesar de muitas vezes, ideologicamente, termos feito uma opção de progresso? Na resposta a esta questão, o espectáculo caminha pela memória do passado, pelo subconsciente, pela associação por vezes quase irracional, tal qual como uma viagem ao subconsciente do cidadão médio português, cidadão que também nós somos.
A criação deste espectáculo obedeceu, enquanto criação colectiva, ao método de trabalho do grupo     
Partimos da ideia base, de alguns textos e de um guião mínimo que nos serviu de rampa de lançamento para o trabalho de improvisação dos actores que, em conjunto com toda a equipa, foram criando o espectáculo, num processo constante de ligação entre as ideias e a acção, num processo constantemente dinâmico, ligando actores e director aos textos e ao guião, até chegar à obra definitiva e ao rigor do espectáculo. Partimos para o espectáculo improvisando, até chegarmos ao guião definitivo, à representação que se repete diariamente, rigorosamente, sem mais lugar à improvisação.
Como opção, colocamos um personagem que percorre todo o espectáculo, que participa em todas as acções, nunca criticando aquilo que faz. Participa como nós participámos, sofrendo as contradições, lutando contra, sendo por vezes cúmplice, mas em todas as circunstâncias sentindo o corpo marcado como cortes feitos a chicote.
E esse personagem, que é qualquer um de nós, chega ao fim com as marcas / sinais de todo o espectáculo, de todo o sistema. O espectáculo acaba na interrogação. Deixamos as questões em aberto, não damos respostas. Não é a nós, artistas, que cabe tal função.
Quanto à sua leitura ela poderá ser por vezes difícil, pois não falamos a racionalidade mas a emoção.
Pretendemos que o espectáculo toque no interior de cada um. Procuramos mais a emoção do que a razão. As imagens sucedem-se como no sonho, ou melhor, como no pesadelo, que durou 48 anos.
Não vos trazemos um panfleto, pois também já não é esse o tempo, sobretudo dentro do projecto estético em que apostamos.
Foi um trabalho duro e desgastante mas reconfortante. Diariamente, damos o máximo de nós na comunhão com o público, que tão perto de nós está. Ao alcance da mão.
E se o espectáculo abalar consciências e visceralmente tocar em cada um, a nossa missão foi cumprida.

Victor Valente, programa de "Memória no Espelho... ou Isabel nunca mais esqueceu estas palavras", 1984

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