Victor Valente e O Realejo (CP, 19-07-86)

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Amargura e desencanto poderiam adjectivar as palavras de Victor Valente, um homem do teatro que já correu o País de lés-a-lés em cima de palcos. Há alguns anos fixou-se nesta cidade. À data do aparecimento da “paixão” Realejo era director do Teatro Universitário do Porto, instituição que deixou para se «mandar de cabeça» para este projecto. Mas é um misto de amargura e desencanto, diríamos quase perda de esperança que ressalta das suas palavras. Se ele soubesse que os porcos nunca agradeceram as pérolas...


Quando pusemos a Victor Valente a questão sobre a alegada interrupção da actividade teatral do Realejo, o director, actor, encenador e o que mais seja necessário confirmou a letargia do grupo: “O Realejo está um pouco parado por diversas razões, das quais a mais forte é, sem dúvida, a irregularidade que tem caracterizado os amputados subsídios que nos chegam à mão. Sempre recebemos (quando foi caso disso!) pelos limites inferiores, e ano sim ano não! Dessa situação resulta uma grande insegurança, e uma impossibilidade de avançar, e dar o passo necessário para a «coisa» se consolidar”.

Assembleia da República intercede

Vêm à baila histórias incríveis sobre atribuição de subsídios, diz Victor Valente que um deles «subiu», inclusive, à Assembleia da República e acabaram por vir 900 contos para ajudar às despesas de “Abeliomonstro”, um espectáculo de luz negra inédito em Portugal, de grande perfeição técnica. Chegou tarde, no ano seguinte, só depois da obra ter recebido o prémio revelação da Associação Portuguesa de Críticos, mas chegou.
Mas mesmo quando vêm a tempo, os subsídios nunca atingem o montante pedido. E o que sucede é que as companhias que recebem o dinheiro são obrigadas a apresentar a peça para a qual efectuaram a petição, o que leva a situações ridículas como uma surgida a outro grupo e que o Realejo quer evitar - o referido grupo preparou um projecto de trabalho para uma peça que custava 8 mil contos. Só recebeu 3 mil, com a obrigatoriedade de montar a referida peça, o que no parecer de Victor Valente, “é uma fraude".
Outro aspecto importante é, no dizer do nosso entrevistado, a diferença de meios de uns e de outros, no capítulo da propaganda - colar 20.000 cartazes ou apenas 2 mil tem a sua diferença, a nível de impacto público. E o Realejo não tem meios para se bater com outros grupos, nesse campo.
“Outro motivo para a nossa paragem tem a ver com a necessidade de repensarmos o nosso trabalho. Queremos passar um ano sem compromissos, reformularmos uma série de coisas”, diz Victor Valente.

Actividade profícua mesmo sem subsídios

Apesar da falta de subsídios, o Realejo só este ano interrompe a actividade “também porque estamos alarmados com o propalado corte nos dinheiros da cultura, plano que tem vindo a lume em vários jornais. Se for verdade o que se diz, o pouco que havia vai sofrer uma redução de um terço, o que só pode trazer consequências funestas para os grupos que estiverem à espera do subsídio”, refere Victor Valente.
Em outros anos o Realejo tem tido, inclusive, uma actividade bastante profícua, de que salientamos “Um serão em nossa companhia”, no ano da fundação do grupo, “Sementiga plum ou em terra de olhos quem tem rei é cego”, ambas sem subsídio, e depois “Viagem de um homenzinho, mala na mão, cheia de sonhos e objectos”. Veio seguidamente uma coisa chamada “Subsídio de Natal” e outra “Nó cego”, o primeiro espectáculo de café-teatro no Porto.
A actividade do grupo prosseguiu com “A porta, um salto no escuro”, um espectáculo de luz negra “pensado” para o Fantasporto, e depois as duas únicas peças não escritas pelo grupo: “No alto mar”, de Mrozek, e um monólogo de Gil Vicente intitulado “O pranto de Maria Parda”. Depois veio “Memória no espelho ou Isabel nunca esqueceu estas palavras”, baseado em textos dos antigos livros da escola primária (que originou uma certa polémica) e “Com papas e bolos se enganam os tolos”, considerado um dos melhores espectáculos apresentados no Festival de Setúbal, que esteve igualmente no Festival de Cangas, na Galiza, onde obteve êxito assinalável.

Sete pessoas ao todo

Quanto ao número de pessoas que compõem o Realejo, diz Victor Valente serem “hoje apenas quatro, ao nível artístico, e mais três pessoas que asseguram os serviços, desde a secretaria à mulher da limpeza. E este ano não há dinheiro para ninguém".
O dinheiro (ou a falta de) passa a ser uma obsessão. Aliás, foi também para resolver esse problema que os homens do Realejo construíram o Rés do Chão, espaço que deveria permitir um certo desafogo económico à companhia. Mas tal não aconteceu; pelo contrário, os homens do Realejo viram-se obrigados a protelar ou simplesmente suspender a actividade do grupo teatral para poderem acudir ao espaço agora criado: “Tivemos que nos dispersar pelos dois sectores, o que acabou por prejudicar a actividade da companhia e outras paralelas que estavam programadas”. “Por exemplo”, refere Victor Valente, “conseguimos efectuar este ano três cursos de teatro em horários diferentes (dois para os que começam e um para os já iniciados) mas outras iniciativas não puderam concretizar-se, como o curso de maquilhagem e caracterização, de luz negra ou de acrobacia teatral, que igualmente estavam nos nossos planos. Vamos ter de encontrar uma fórmula que nos permita conciliar os dois espaços, coisa até agora impossível pois temos que “fazer” o dinheiro que gastámos nas obras, obtido por intermédio de amigos que se dispuseram a emprestar as suas economias. Ninguém nos ajudou até à data, apesar dos pedidos terem sido devidamente endereçados aos diversos organismos”.

“Isto está moribundo, e os jornais têm culpas”


A conversa estava a chegar ao fim. Não que esgotasse o tema, mas porque o espaço (de jornal) disponível se tornava exíguo. Aproveitando a deixa (no aproveitar é que está o ganho...) Victor Valente “abriu o saco” e fez queixas. Sentidas. A desilusão sobrepõe-se agora uma sensação de desencanto, diz o actor: “Há já muitos dos meus colegas que pensam seriamente em abandonar a actividade, e outros tem que se dispersar por outras coisas para conseguirem sobreviver. Há crise de público, isto (o meio teatral) está moribundo”. As razoes são várias, e os jornalistas também têm a sua quota-parte das culpas, refere o nosso entrevistado:
“Os jornais não falam de nós, e isso faz com que as pessoas não venham aos espectáculos, por muito bons que eles sejam. Se um indivíduo se estampa vem logo a noticia nos jornais, mas se é cultura... Para fazer passar um comunicado, por exemplo, é preciso enviá-lo a nome pessoal de alguém, e mesmo assim tem que se pedir por especial favor!”. Mas ainda há mais: “No Porto não há críticos de teatro! Se os há, que apareçam, que falem de nós, nem que seja para dizer mal. Porque nós necessitamos dos críticos. Só com criticas à nossa actividade poderá haver evolução. Mas não há nenhum, cá no Porto!”

No princípio era só o Realejo. Agora é o Realejo e o Rés do Chão. Como outras companhias de teatro, “fazem das tripas coração” para não fecharem as portas. Valha-lhes S. Cavaco, que parece andar um pouco arredado destas coisas da cultura. Ou então... vamos esperar que um indivíduo com mais sensibilidade para os valores espirituais seja eleito primeiro-ministro. É que este, pelos vistos, só sabe fazer contas de... reduzir ou cortar subsídios.

Filipe Duarte, O Comércio do Porto, 19 de Julho 1986

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