Espelho embaciado - Carlos Porto

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O teatro é um instrumento de recuperação do passado, entre outras coisas. Não é novidade nenhuma, pois são frequentes os espectáculos em que é feita essa tentativa de recuperação de uma história perdida, às vezes, esquecida. História que tem a ver com o nosso presente e portanto com o nosso futuro, pois como povo e como indivíduos temos vindo a ser formados, informados, deformados, ao longo das gerações que nos antecederam e a que pertencemos, ou os nossos país, ou os nossos avós. Esta viagem ao/pelo passado não é revivalista, proustiana, retro. É, repete-se, uma forma de auto-reconhecimento.

Se o teatro, como escrevi, nos propõe com frequência viagens desse tipo, fá-lo geralmente a tempos longínquos, tendo como ponto de partida grandes acontecimentos e grandes personagens. Estamos no domínio da História maiusculada.
O projecto de O Realejo foi mais original. Menos ambicioso e talvez mais interessante. Menos próximo da História que da sociologia. Tratava-se de procurar algumas das raízes de onde saímos e que foram abundantemente adubadas pela doutrina de «Deus, Pátria e Família» (não me dirijo a jovens,
.bem  entendido). Um espaço próprio: a sala de aulas da instrução primária; as personagens que ainda não esquecemos; nós e os nossos companheiros de classe; os senhores e as senhoras professoras. Noutra área, os pais e o padre. Também reconhecemos os instrumentos: o mapa de Portugal com as suas gloriosas conquistas; os livros únicos; a régua, a cana, a palmatória; a lousa grande e a lousa pequena. Na parede, o crucifixo entre os retratos de Salazar e Carmona. Escola, doce escola. Que aprendíamos nós? Como era moldada a nossa inteligência ainda tenra? Que mentiras nos inculcavam? Que carga de hipocrisia? Em que medida era a nossa imaginação castrada? Como nos tornávamos violentos ou fingidos? Como sofríamos?
Este espectáculo não responde tão eficazmente como esperaríamos a estas, ou a outras, perguntas. Dir-se-ia que o trabalho de O Realejo se desvia em parte do seu objectivo essencial, preferindo urna análise das relações da criança com a sociedade que a espartilha (a escola, a família, a Igreja). Surgem os sinais da repressão, da castração, mas talvez diluídos, em parte diluídos, na abstracção das relações múltiplas e ritualizadas que perdem de vista, parece-me, o principal. O imaginário do espectáculo talvez ganhe o que perde em rigor de uma análise que devia ser mais fria, mais concreta, mais profunda.
o «come a sopa» insuportável, ou o pai que bate no filho, são imagens sem surpresa. Falta ao espectáculo o específico da situação; o espaço único no qual o fascismo tentou moldar a criança portuguesa à sua imagem e semelhança. Sem o conseguir, como sabemos. Pela simples razão de ser anti-humana e por isso contra a criança.
Espectáculo construído com as habituais dificuldades destes grupos, «Memória no Espelho» não deixa de conter elementos sugestivos a ter em conta: a enorme lousa colocada no solo, o jogo com o pano branco, os bonecos, o trabalho musical de José Prata.
Um trabalho de interpretação que sacrifica, por vezes, o rigor ao espalhafatoso, mas que não deixa de ter algum mérito no levantamento desta microssociedade.
Paralelamente ao espectáculo pode apreciar-se uma bem organizada amostra de material escolar da época.

MEMÓRIA NO ESPELHO OU ISABEL NUNCA MAIS ESQUECEU ESTAS PALAVRAS.
Criação colectiva de O Realejo.
Guião: Armando Dourado, Clara Bento, José Prata e Victor Valente Encenação: Victor Valente
Música: José Prata
Cenografia e figurinos: Clara Bento
Interpretação: António Mário, Augusto Pereira, Belmiro Ribeiro, Clara Bento e Rufino Lopes.
Vozes: Rosário Ferreira, Marcelo Jorge e Alberto Augusto. Grupo O Realejo. Estreia: 1/5/84 (4/6/84)

Carlos Porto, Diário de Lisboa, 14-07-84

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