Entrevista ao Jornal da Educação (Jan.84)

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Victor Valente (O Realejo):
"Teatro é teatro, literatura é literatura"

Actor, ilusionista, animador teatral, músico e cantor, na minha opinião essencialmente director de actores, Victor Valente, ainda a olhar pelo longe os quarenta anos, é um autêntico “animal de palco”, daqueles que, se calhar não figurarão na História, mas que vão construindo e fixando o dia-a-dia das nossas histórias.
Mas toda essa polivalência não vai, pela dispersão, complicar, impedir o aprofundar de um trabalho? Foi a pergunta que, pelo meio do “cimbalino”, abriu a conversa.


Victor Valente acha que há perigo de dispersão, mas por outro lado, este repartir por várias áreas — todas elas no entanto ligadas ao espectáculo — condicionam e influenciam muito daquilo que ele pensa acerca do teatro que quer fazer.
“Em qualquer espectáculo que eu faça sente-se isso mesmo, sem no entanto ser vontade expressa à partida.”
Como igualmente se sente que são espectáculos que se estendem por vários campos: da intensidade visual à fantasia ilusionista, da inquietação rítmica ao sonho musical. Curiosamente também, sem grande destaque para o texto. Ou não?
“Teatro é teatro, literatura é literatura. Pessoalmente, interessa-me muito pouco a literatura teatral, já que entendo o teatro como espectáculo de acção e não de texto. E isto sem negar o texto. O que o teatro não deve é manter-se apagado em relação ao dramaturgo.”

E quanto a dramaturgos, o nosso homem apenas é atraído pelos clássicos. Os contemporâneos, esses não lhe despertam grande interesse. No entanto, esta atracção não è confundida com a tentação pedagógica do teatro:
“O teatro não deve ser utilizado como meio de divulgação ou de muleta interpretativa, seja do que for, mas sim como espectáculo e necessidade de comunicação entre o público e o grupo que o faz.”
Daqui uma das razões por que “O Realejo”, cooperativa de produção de espectáculos, sedeada no Porto, e da qual Victor Valente é sócio fundador e habitual director artístico, não produz espectáculos a pensar no “circuito escolar”, ou seja: não programa o seu trabalho em função dos autores dados nas .escolas. O que não quer dizer que as produções de “O Realejo”, como já aconteceu, não sejam apresentadas nas escolas, mas apresentado como espectáculo em si, não por ter tratado este ou aquele autor curricular.
E são estas e outras opções que vão erguendo a “linha” de um grupo. Neste caso da cooperativa portuense, essa linha, e pegando no fio da meada discursiva de V. Valente, não será algo de (definitivamente) elaborado ou, muito menos, teorizado.
Há opções por determinados campos e não por outros. Há a preocupação pela globalidade, há ainda as pessoas que habitualmente têm estado à cabeça dos espectáculos, que provêm das mais diversas áreas artísticas e que estão “na mesma onda”.
No entanto, Victor Valente é o chefe do grupo, “O Realejo” teve (magro) subsídio e, segundo responsáveis ministeriais ligados ao sector, do teatro, um dos critérios na atribuição dos subsídios, na corrente temporada, teve a ver não com o colectivo, mas com os “nomes” de quem está à frente.
“Eu acho que o trabalho de 'O Realejo' está marcado por mim e por aquilo que eu penso acerca do teatro. Sou um dos elementos fundadores, desde sempre na cooperativa me tenho mantido, o que não quer dizer que 'O Realejo' é Victor Valente.
Acho que a nível dos grupos de teatro profissional, passamos por uma enorme crise e a tendência é para o 'desenrascar'. Não se escolhe o trabalho por razoes de opção estética / ideológica, mas por necessidade de emprego.
Pessoalmente, continuo a defender o trabalho em grupo de gente na mesma onda, como agora se diz, mas um trabalho com responsabilidades bem distribuídas, disciplinado e com direcção forte.”
Com o segundo “cimbalino” a aterrar na (nossa) velha mesa do Café Imperial, Praça D. Pedro V, Porto, continuamos a conversa agora derivando para o método de trabalho usualmente seguido “na casa” para montagem dos espectáculos.
Neste caso, o princípio é a ideia., Depois há todo um processo de discussão no sentido de aclarar essa ideia, dando-lhe cor e estrutura. E se a “ideia” agrada, inicia-se o trabalho de improvisação que o meu interlocutor considera fundamental e um dos atributos base do actor.
Pistas novas são recolhidas do trabalho de improvisação que, depois de tratadas, são o mote para novas improvisações. E o ciclo mantém-se, e enriquece-se, até à estruturação do guião do espectáculo, o que quer dizer que se podem iniciar os ensaios para o apuramento final da obra, tanto em termos de “trabalho de palco”, como no campo visual e musical.

Uma arte de rigor

E, no meio de tudo isto, qual é o teu papel?
“A minha função principal è conduzir a criação, dirigir os actores e dar coerência a uma coisa que ainda o não é. Depois há um momento em que eu, como director artístico, encenador se quiseres, tenho de ter o controlo sobre toda a equipa de trabalho, para que, na fase final de montagem do espectáculo não haver hesitação, nem desvio, nas decisões a tomar.
Esta fase è fundamental, atendendo a que o teatro é uma arte de rigor e como tal não se, compadece com falta de firmeza nas opções que se tomam.”
Falamos depois sobre o actor, essa espécie complicada, mártir, fingidora, fundamental. O (jovem) encenador, e (velho) actor, considera a fase do “actor ser sublime e superior” deslocada, académica e caricata no nosso tempo. Por outro lado, considera que devem ser seus atributos, o máximo de técnica e a maior abertura às pessoas e à vida.
Em relação à preparação do actor, que defende constante e aplicada, Victor Valente refere a necessidade do absoluto domínio do corpo, tanto pelo seu conhecimento, como pela exploração vocal, do canto e da acrobacia. Por outro lado, e dentro do trabalho da companhia, “mesmo em situação económica ideal, é muito importante que o actor saiba varrer o palco, serrar, pintar, pregar, etc.”.
“Deve-se evitar ao máximo”, conclui por entre a ironia de uma gargalhada Victor, “o desfasamento entre o trabalho intelectual e manual”.
Agora que as “migalhas do Poder” permitem às companhias fazer planos (necessariamente curtos) para a temporada, o que podemos esperar, ver e sentir no (bonito) espaço de “O Realejo” ali para as bandas da Ribeira do Porto? Bem, para já prepara-se um novo espectáculo, já com título (“Memória no espelho, ou Isabel nunca esqueceu estas palavras”) que, tendo por “ideia” os livros da primária no tempo do fascismo, e por base os trabalhos anteriores do grupo (Mar alto, ao largo...), será assegurado pela habitual equipa, e presenteará a cidade do Porto a 25 de Abril, que foi uma data que existiu.
Lá para o final da época, outro espectáculo: “Com papas é bolos se enganam os tolos”, este baseado na sabedoria popular, registada em contos, rimas, mezinhas, etc.
Para já, para já, os “Café-Teatro”, dos quais “O Realejo” é pioneiro na cidade, vão (voltar a) animar as noites de sábado. E a grande novidade vai ser o “Pranto de Maria Parda” interpretado pela escultora-cenógrafa-professora-actriz Clara Bento. É assim este pessoal de “O Realeio”; tem a mania que é polivalente.

João de Melo Alvim, Jornal da Educação nº 73, Janeiro 84

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