O Coração e a ideia do Teatro

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«O Realejo» e o seu «Sementiga-Plum!!!», ou em terras de olhos que tem rei é cego» são a prova provada de que em Portugal já se faz teatro bem metido na carne e nas ideias das pessoas; prende e desprende; cativa e liberta. Prende-nos e cativa-nos a carne e os sentidos; desprende-nos e liberta-nos os sentimentos e as ideias.
E se «O Realejo» fez uma aposta estética: a combinação da imagem com a ideia, numa harmonia surpreendente, assumiu, então, a partir daí, um compromisso com o público: continuar, obrigatoriamente a fazer teatro, seja onde for, dê por onde der, mesmo que os teatros se virem de pernas para o ar.

Estas poucas palavras, aliás, de pouco servem e nem sequer pretendem ser uma crítica ao grupo e ao seu espectáculo, pois me senti honestamente ultrapassado por um e por outro. A verdadeira crítica fá-la o público durante o espectáculo, sobretudo o público infantil que tão naturalmente se deixa maravilhar pela história que lhes é contada. Numa cena em que os «plums»- assim se chamam os habitantes do reino efabulado— na ausência da vigilância repressiva, sopram balões que clandestinamente trazem escondidos nos seus fatos, um dos miúdos comentou deste jeito esta situação dramática: «Ai que mundo!» Efectivamente, os «plums», privados de brincarem há tanto tempo com os seus balões, não resistem à tentação de soprarem nos balões multicolores. E com tanta sofreguidão o fazem que, um após outro, todos os balões rebentam, acordando tragicamente os vigilantes. Mas a ínteligência dos «plums», aliada ao seu sentido de resistência que os leva a retomar instantaneamente a marcha militarizada, evita por um triz a desconfiança dos seus opresores. O jogo dramático desta cena é de facto admirável, não admirando, pois, que o miúdo tão dela possuído e tão propenso à atitude dos «plums» se libertasse também ele de grandes e pequenas opressões e gritasse a plenos pulmões o que lhe ia na ideia.
«Sementiga-Plumü!» parte do nosso mundo, das nossas manias, vícios e loucuras e chega a um outro mundo onde os seus habitantes trabalham, amam e brincam, sem loucuras, sem vícios, sem manias. Mas os pedagogos ao melhor estilo ro-co-có e os políticos decadentistas não se fazem esperar e reclamam a ordem, a disciplina, bem como a autoridade. Durante algum tempo a marcialidade monolítica impõe-se aos «plums» que passam a viver debaixo da ameaça latente de duas unhas gigantes — que rebentam balões, e de um apito que comanda marchas, ginástica e trabalhos forçados. O plano de libertação, porém, resulta em êxito e o desapossamento das unhas gigantes e do apito dos tiranos é uma feliz realidade para os «plums» que radiantes voltam à sua sociabilidade completa, com seus jogos e brincadeiras, com suas sementeiras e colheitas.
Enfim. Uma história que nem precisou da palavra para ser contada. Bastou-lhe apenas a luz, a cor — bem espalhada e combinada—, o movimento — normalmente bem desenhado—, e a utilização plena dos recursos expressivos dos actores que se nos souberam mostrar a alegria do tempo da concórdia social, também nos evidenciaram toda a amargura quando reinava a tirania. E é da realização física e psicológica desta situação dramática antagónica que deriva essencialmente a força poderosa das interpretações plásticas dos actores de «O Realejo».
As poucas interpretações verbais são igualmente bem desempenhadas, destacando-se, contudo, o discurso do tirano feito na base de significantes, deixando os significados ao critério dos espectadores.
Caracterização a distanciar os actores das suas personagens e a criar o ambiente necessário à fábula, caracterização do tirano magnificamente inquisitorial, cenários e adereços funcionais e bem imaginados, e, finalmente, uma direcção firme e eficaz, cuja consequência é um trabalho homogéneo, certo e bem ritmado, são os outros pilares em que assenta o notável espectáculo de "O Realejo", o tal "ai que mundo! do não menos notável pequeno espectador de Barcelos.

Fernando Pinheiro, in Barcelos Popular, 08-05-80

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